O túnel sem luz no Rio que liga o Tibet à Estônia

Antônio Bordallo é um corintiano do Rio de Janeiro. Essa é a forma que ele se apresenta. Nascido e criado em Copacabana, Toni, como gosta de ser chamado, não sabe explicar muito bem o porquê a escolha do time: “Talvez tenha tido a ver com as cores, a camisa…”, pondera. Deve ser. Afinal, poucas pessoas dão importância a detalhes tão pequenos quanto Toni, ainda mais quando o assunto são camisas de futebol.
Conheci Toni em um fórum de colecionadores de camisas de futebol: o Minhas Camisas (www.minhascamisas.com.br). Frequentador assíduo da área de comentário, Toni era relativamente famosos entre os visitantes do site. E decidiu então criar sua própria página sobre camisas de futebol, o Esporte à Porter:
Hoje, Toni é um designer de uniformes esportivos, ou melhor: sportwear. Pelo menos assim se considera, mesmo com poucos trabalhos no ramo. As oportunidades são escassas, mas Toni já sabia disso quando quis fazer de Design de Moda sua terceira faculdade. Após cursar faculdades de Letras e Relações Internacionais, trabalhava há cinco anos como guia turístico quando decidiu mudar de área em 2006.
A minha historia é bem longa. Já passei por muita coisa. Para o final dos anos 1980, tinha muita loja de esporte no Rio, com várias camisas. Sou de uma família bem simples e o preço dessas camisas naquela época já não eram lá tão acessíveis. Somente em 94 que eu tive (ás duras penas) dinheiro pra comprar uma camisa “oficial” de futebol. A partir de então, apesar das restrições de grana, sempre fiquei antenado em como conseguir coisas raras a preços baratos. Chegava a encarar 1 hora de ônibus indo pra Bonsucesso, só pra conferir as boas ofertas.
De achar interessante eu comecei a admirar a estética das camisas, observar os detalhes. Eu até queria fazer moda quando eu entrei na faculdade, mas eu não tinha como fazer numa faculdade particular. Lá pra 92, 93 eu comecei a desenhar camisa, à mão mesmo, com lápis de cor mesmo, mas sem a ambição, era algo muito distante.
Em 2005 eu tive um acidente e depois disso, você acaba querendo fazer o que você gosta, ter prazer no trabalho. E o que eu gostava era de desenhar camisas. O fato de ter tido uma historia antes de virar uma moda, a conhecer melhor essa historia.

O acidente de que Toni fala com tranquilidade não foi tão tranquilo assim. Em 2005, ele ainda trabalhava como guia turístico no Rio de Janeiro quando uma mudança de trajeto mudou a sua vida:
Resolvi continuar como guia de turismo no Rio, que já fazia desde 2000, para juntar dinheiro e então realizar um sonho que tinha desde minha adolescência: morar na Europa. A única coisa que me prendia no Brasil era a carteira de motorista.

Se tivesse a carteira internacional, na pior das hipóteses, ele poderia pegar algum emprego de motorista em Londres, que aonde planejava ir. A passagem estava agendada para dali duas semanas. Até que os planos mudaram.

No dia 4 de maio eu tive folga do trabalho, e por isso fui cuidar de outros assuntos e depois fui pra academia perto do meio-dia. Sai de lá 13h30, mais ou menos, e quis terminar a malhação com uma volta de bicicleta pela Lagoa. Em vez de pegar o caminho de sempre, pelo Corte Cantagalo, resolvi cruzar o Túnel Velho, que era há poucos metros da academia, e seguir pelo Humaitá. Entro no túnel, vazio naquele momento, mantenho-me no canto da pista, pra não ser pego por um carro que viesse no meio na pista e não me visse.
Quando estava na metade do túnel parece que aconteceu uma troca abrupta de cena no meio do filme: numa cena estou dentro do túnel cuidando pra me manter no meu canto e, do nada, corta pra outra cena, completamente diferente: eu, deitado, com minhas costas raladas queimando no asfalto quente das 13h.
Um ônibus surgiu do nada, sem buzinar, sem ligar o farol, me atropelou e foi me arrastando debaixo dele até fora do túnel. Olho pra baixo e minhas pernas estão num estado impossível de descrever, e longe de mim uma multidão me observa e diz pra não me mexer muito, que a cada momento que tento me levantar, bombeio mais sangue pra fora do meu corpo. Os pedestres me observam estirado no asfalto quente, sem coragem alguma pra descer e me prestar qualquer socorro. Nem mesmo o motorista ou qualquer pessoa que está dentro do ônibus. Acho que pensavam que já era mesmo, que em questão de tempo morreria, na rua ou no hospital.
Lembro claramente do momento dentro da ambulância, com os paramédicos me reanimando, mas ao mesmo tempo batia aquele sono dos mais gostosos que já senti, aquele sono tentador, ao mesmo tempo em que ao meu redor havia pura tensão e caos. O paramédico dizia pra eu não fechar os olhos e nem dormir, pois muitos numa situação dessas se entregam ao sono e não retornam nunca mais. Tive que escolher entre um sono maravilhoso, que me faria escapar de todo aquele caos que me rodeava ou uma vida que na hora eu já sabia que não seria mais como eu planejava.

Por mais clichê que possa parecer, Toni realmente esteve à beira da morte. Mas não morreu. E isso bastou para ele.

A primeira lembrança que tenho após chegar ao hospital e entrar na sala de cirurgia foi no dia seguinte: uma médica se aproximou e conversou comigo, toda cuidadosa, e me disse que o acidente foi muito grave e que por conta disso tive a perna direita amputada e a esquerda lesionada seriamente. Pode parecer estranho, mas minha reação automática foi dizer: “Foi só isso mesmo, doutora? Então tô no lucro até”. De fato achei que, dada a dimensão do acidente, a consequência seria muito pior que uma perna amputada. Eu sei a porrada que é ter um ônibus te atropelando e te arrastando. Eu não estava nem me lamentando pelo que perdi, mas celebrando o que sobrou.
Mais importante que o próprio acidente, a recuperação serviu pra Toni como momento determinante de que tipo de vida queria levar após um trauma como aquele. O quê fazer depois de ver seu esforço estraçalhado por um ônibus?
Passei um bom tempo mal, deprimido. Não só tinha interrompido meu sonho de morar na Europa, mas minha vida tinha dado um passo enorme pra trás. Deixei de ser independente para ser alguém que precisava de ajuda pra tudo: comer, ir no banheiro, sentar.
Mas não demorou muito pra eu mudar, não. Sempre fui um cara que estipulava metas, que tinha sonhos, objetivos maiores. Não que eu fosse sofredor desde pequeno, minha mãe sempre meu deu tudo o que precisava, mas eu sempre quis mais, sempre fui diferente. Não tinha dinheiro, mas me virava pra tentar comprar as camisas de futebol, pra assistir o rúgbi que não passava na TV, pra aprender línguas novas, sabe? Fiz duas faculdades e fui trabalhar numa profissão completamente diferente das duas, com a ideia de ir pra Europa.
O futuro pra mim não seria nada como imaginava ou tinha planejado, mas decidi não parar pra refletir sobre isso todos os dias, como sendo um fardo que diariamente eu carregasse. Preferi encarar como se esse período pós- acidente fosse uma prorrogação que o juiz deu, e por isso tenho a obrigação de dar tudo de mim pra, mesmo que nos pênaltis, sair com a vitória.
Queria ultrapassar meus limites. E o acidente me trouxe limites novos, mais difíceis. Antes de pensar em ir sair do país de novo, eu tinha que descobrir como ia me virar com a cadeira de rodas ou com o andador. Mas, ao mesmo tempo, nunca esqueci minhas metas. Acho até que fiquei com mais vontade de fazer o que eu quisesse, de sair, de me superar.
Tive muito tempo livre, de cama, sem poder fazer nada, e aproveitei pra me engajar em vários projetos, mexer com as coisas que eu gostava e tinha deixado meio de lado. Foi quando comecei a participar mais das discussões do Minhas Camisas. E comecei a retomar meu gosto por camisas.

E o gosto passou a ser profissão. Por que não? A meta que Toni havia ignorado até então passou a ser prioridade.
Eu, que tinha uma fobia de programas de computador como Photoshop e Corel, tava com um tempo mais livre eu me dediquei a aprender como usar, vi tutoriais e tal, e comecei a desenhar por conta própria.
Depois do período inicial de recuperação do acidente, juntei o dinheiro que tinha economizado pra ir pra Londres e decidi ir atrás da qualificação necessária pra ser um designer de camisas de futebol. Fui fazer uma faculdade de Moda e Design.

Em meio a tudo isso as coisas foram andando. O Esporte À Porter funcionando, cada vez com mais detalhes técnicos adquiridos com o aprendido nas aulas. Os desenhos também. Até que a grande oportunidade chegou.
– Todo aficionado por camisa de futebol que tenha fuçado um pouco na internet conhece o Football Shirt Culture. É um site inglês bem acessado que fala não só de camisas e lançamentos, mais têm fóruns onde os colecionadores e desenhistas “wannabe” podem mostrar seus desenhos, suas opiniões.
E aí rolou um concurso, em 2008, época em que a seleção da Polônia fechou contrato de fornecimento com a Nike. A ideia era fazer um desenho, que entre os fãs a gente chama de “mockup”, pra o que seria a nova camisa da Polônia. E eu ganhei.

Pelo concurso em si, Toni não ganhou nada além de reconhecimento. Mas isso bastou para que conseguisse sua primeira oportunidade real no ramo. Time grande de Alagoas, o CRB havia acertado com a Tronadon, empresa de Recife que recém entrava no futebol e Toni foi o responsável por desenhar a nova camisa da equipe.
O concurso no Football Shirt Culture foi onde deslanchou a minha carreira, foi quando eu vi que tinha futuro, que meu trabalho tinha seu valor. Um dos colegas do Minhas Camisas, tinha o contato da Tronadon e aí me pediu pra fazer o desenho pro CRB e de outros times. E o do CRB foi aprovado.Foi a realização de uma fantasia de moleque, ver um jogador comemorando um gol com sua camisa na cara, beijando o escudo. Você fica até meio bravo quando ele tira pra comemorar, fica feliz de ver o juiz dar amarelo só porque jogou a camisa que você fez no chão.
Mas o hobby de adolescenteteve repercussão ainda maior. Por causa do mesmo concurso Toni tornou-se protagonista de um projeto muito maior, o maior de sua carreira até o momento: desenhar a primeira camisa oficial da seleção do Tibet, um trabalho encomendado pela companhia holandesa COPA:
Eu tinha ganho o concurso do FSC e isso me deu uma projeção legal. Aí o próprio CEO da Copa me escreveu e me convidou pra um projeto ultrassecreto e eu aceitei na hora. Semanas depois eu fiquei sabendo que era pra uma seleção e ainda mais do Tibete. E ai disse: “Essa é minha chance”. Foi uma ponte RJ-Amsterdam-Norte da Índia, ultrapassando os 300 e-mails, durante mais de 6 meses, com críticas, sugestões, pedidos. Fiz toda a linha: bolsa, camisa de passeio, jaqueta, numeração especial baseada na tipografia deles.
O sucesso repentino levou o trabalho de Toni de sua prancheta até as mãos de Dalai Lama, líder tibetano. Mas as experiências também fizeram com que ele tivesse uma nova noção de como funciona a profissão de designer esportivo:
O designer é pago pelo projeto fechado, com “x” camisas e tal. Cada camisa aprovada pelo clube, você ganho tanto. Você recebe um briefing e começa a partir dali. Eu começo no papel e caneta mesmo, pesquiso bastante sobre o clube ou a seleção. Depois de um tempo eu vou pegando o melhor do material cru e passando pro computador. Vai rolando então o transito de e-mails. Mas tem também a ficha técnica em algumas marcas. Porque é o trabalho do estilista, cor, medidas, silkado ou não. Por isso as vezes não fica exatamente do jeito que o designer fez. A marca tem a última palavra em tudo, o design mesmo é só uma pequena parte.
Após os dois trabalhos iniciais, Toni viveu a expectativa de novas oportunidades no ramo. Oportunidades que são escassas e concorridas:
Existem alguns processos de escolhas de designers, seletivas e entrevistas de trabalho, como em qualquer outro emprego. Mas as vagas são muito poucas. Muito poucas mesmo. E as vezes as empresas prometem e não cumprem. É uma espécie de trabalho artesanal, sem muita regulação.
Mais recentemente, em dezembro de 2012, Toni recebeu mais um convite para uma nova empreitada/”furada” no ramo.
Fui contatado por uma empresa dos Emirados Árabes, chamada KCS, que viu meu portfólio e queria que eu coordenasse a área de sportwear da marca. Mas foi tudo uma grande confusão. Na primeira vez os caras me trataram mal, não pagaram minha passagem, queriam que eu fosse pra Dubai sem nenhuma garantia e depois me disseram que eu tinha sido pouco profissional. Ainda tentei uma segunda vez, por realmente estar afim de mais uma chance nesse meio, mas o dono da companhia repetiu os mesmos erros e ainda me fez perder mais de mil euros com a passagem desde aqui de Talinn até Dubai.
Pra quem se pergunta, Talinn é a capital da Estônia, país europeu eslavo, para onde Toni mudou-se em dezembro de 2011.
Vim morar aqui por causa da Anne, minha namorada. Depois de um tempo já estava difícil namorar à distância, só pela internet. Decidi mudar todo de novo. Além de tudo, ainda que não seja Londres, estou cumprindo meu sonho de viver na Europa. E aqui ainda estou mais próximo de fazer contatos no meio do design esportivo.
Apesar das dificuldades, Toni Bordallo está em constante movimento. Lento, pelas beiradas, ele chega aonde queria, atinge as metas que traçou um dia, antes mesmo de saber que um acidentado passeio de bicicleta pelo túnel poderia leva-lo ao Tibete e à Estônia antes de chegar ao Humaitá.

O Rei da Paulista

Do seu palco de 2 metros quadrados montado na calçada da Avenida Paulista, sua voz ecoa embalada por sua personalidade carismática, de fazer o trânsito parar. E não é figura de linguagem, todo motorista de ônibus que tem a sorte de pegar o sinal fechado próximo ao seu palco, aproxima-se, buzinando, e abre a porta do veículo, para que Elvis, como um rei, entre nele e abençoe com sua graça o resto da viagem.

O homem em questão é um homem de cabelos negros, que ele jura não pintar, estatura charmosamente abaixo da média, de muitos sotaques, que variam de acordo com o humor – o carioca, o paulista, o mineiro, o gaúcho -, todos bagagem de suas incontáveis viagens pelo Brasil e reflexo de sua personalidade camaleônica. Seu nome? Márcio Aguiar.

Márcio nasceu em São Paulo, mas ainda pequeno mudou-se com os pais para Minas Gerais. Foi criado numa pequena cidade do interior mineiro chamada Itapiraí, onde seu pai tinha uma farmácia. Filho de fiéis da Igreja Adventista do Sétimo Dia, Márcio conta que teve uma infância reprimida, pois seus pais o obrigavam a seguir à risca os dogmas da religião, que ele desgostava.

Somente aos 25 anos teve seu primeiro contato com a música, quando tomou as primeiras aulas de violão. Nos anos que se seguiram, tocou numa dupla sertaneja em Araxá, no Triângulo Mineiro, até que no final de 2008, com o surgimento do sertanejo universitário – gênero para o qual Márcio faz uma longa divagação, culminando na resolução de que se trata de uma “grande jogada de marketing para vender música sertaneja para as elites” – Márcio decidiu mudar de estilo.

Como não gostava muito das técnicas do novo gênero, e cada vez havia menos espaço para o sertanejo de raiz, Marcio viu que precisava investir em algo novo. “Um dia apareceu uma senhora que fazia teatro e me ofereceu um papel de caipira. Eu topei, e aproveitei para pedir a chance de apresentar meu quadro dos ‘50 personagens’.

Os ‘50 personagens’ tratava-se de um quadro que Márcio vinha desenvolvendo há algum tempo, inspirado nos trabalhos de Tom Cavalcante e do Carioca, do Pânico, em que fazia imitações do caipira, do Lula e do próprio Tom.

Foi então que Marcio teve seu primeiro show de comédia, no Grande Hotel do Barreiro, um projeto faraônico erguido na pequena cidade de Araxá. O sucesso do quadro de Márcio foi tão grande, que logo começou a ser tratado como superstar. “Eu amo aquele lugar, tinha uma vida de príncipe lá dentro, mas chegou um momento que eu não tinha mais como crescer lá. Me deparei com a música do “Raulzão” [Seixas]: ‘eu que não me sento na boca de um apartamento, com a boca escancarada de dentes, esperando a morte chegar’. Lá foi só o início de minha carreira.”

Embalado pelo sucesso do quadro, Márcio interrompeu sua carreira de músico para investir na carreira teatral, e decidiu voltar para São Paulo. Vendeu tudo o que tinha, ficou apenas com um violão e começou a apresentar no bar Charme da Paulista seus covers de Dinho Ouro Preto e de seu grande ídolo, Raul Seixas.

Dinho foi o primeiro personagem que Márcio apresentou nas ruas paulistanas , e lhe rendeu uma matéria na SPTV, que cobriu sua apresentação como cover do cantor paranaense durante a corrida de São Silvestre.

Já com Seixas, a ligação não é só artística, é transcendental. Assim como o cantor baiano, Márcio tem um grande interesse por filosofia – diz ter lido três mil livros, “muitos somente folheados” e ter mudado sua forma de ver a sociedade depois que conheceu Rousseau. Além do mais, nada define melhor Márcio Aguiar do que aquela metamorfose imortalizada na obra de Seixas. Se ontem foi cantor, hoje é performancer, amanhã quem sabe filósofo.

O tempo também é algo peculiar em Márcio. Não existem anos, datas, meses. Sua cronologia se baseia nos grandes eventos de sua vida, em suas memórias mais vivas, mais presentes, fazendo de suas experiências, seu tempo-rei.

Como todo artista, Márcio gosta de ser reconhecido e adorado, mas como ele mesmo diz, não faz arte pela fama, faz arte por “dar forma à expressão”. Diz apreciar o reconhecimento material, ou “jabá” como ele denomina o dinheiro, mas seu maior orgulho é o carinho do público e ter seu trabalho divulgado na mídia. “Em 2011, passei um período afastado por questões familiares e quase entrei em depressão, aparecer na mídia me faz bem, me mantém vivo”, lembra Márcio.

Sua primeira aparição na TV foi no programa Fantástico, numa matéria que falava sobre os artistas de rua no quadro “Profissão Repórter”. A partir de então Márcio apareceu em matérias nos jornais Folha de São Paulo, Estadão, e participou de um programa ao vivo na Rádio Gazeta.

Pedro Vaz, gerente da emissora, foi um dos primeiros jornalistas a dar espaço para Márcio na mídia. Segundo Pedro, o que mais lhe chamou a atenção em Márcio foi o capricho que o artista tem com o personagem, com o vestuário, e com o palco. “Ele faz um trabalho na calçada, a céu aberto e ao mesmo tempo ele transforma a calçada num palco como o de um teatro. Eu fico imaginando se ele estivesse no palco do Teatro Municipal, tenho certeza que ele faria a mesma coisa. Como ouvi uma vez de uma outra artista de rua, ‘quando a gente perde o teatro, a gente ganha as estrelas’, e isso acontece com o Márcio, ele não tem telhado mas tem o céu, as estrelas”.

Pedro conheceu Márcio em 2011 quando este fazia sua primeira aparição como Elvis. Repetindo a façanha do ano anterior, Márcio decidiu participar novamente da corrida de São Silvestre, mas desta vez representando o rei do rock. Enquanto caminhava pela Av. Paulista, vestindo um macacão branco à moda de Presley, com seu violão nos braços, cantando It’s now or never, Márcio despertou a atenção de Pedro, que o convidou a participar de seu programa na Rádio Gazeta.

Mas esse mise-en-scène é só uma parte de sua popularidade. Não importa a hora do dia, seu palco estará rodeado de espectadores e fãs. São pessoas que, encantadas com o carisma de Márcio, não perdem uma apresentação. Faça chuva, ou faça sol estão lá, ao redor de seu palco, abastecendo a garrafa do “rei” com água, e dando os gritos mais empolgados na multidão.

Marli é um desses fãs. A senhora de em torno de 60 anos, fã dos Beatles e de Elvis, o Presley mesmo, diz ser a fã número 1 de Márcio – que a apelidou de “mãe da Paulista”-, e o idolatra por sua pessoa e por sua arte. “A simplicidade, a humildade, a bondade no coração do Márcio, entraram no meu coração e na minha alma, e isso me prendeu, fazendo um laço de amizade que ele [Márcio] fala que vai durar pra sempre. Se deus quiser vai ser assim, porque Márcio é uma pessoa digna, sincera, talentosa, acima de tudo”, declara Marli orgulhosa.

Márcio, que se apresenta na Avenida Paulista desde outubro de 2012, diz que estar em seu pequeno palco é sua grande alegria. “Quando estou aqui é uma criança que desperta em mim, quando acaba fico muito triste. Não gosto de fazer shows particulares, se não vou com a cara da pessoa. Faço arte pela arte. Não tenho a intenção de ficar rico. Aqui ganho o suficiente pra pagar minhas contas e os custos do figurino e do cenário.”

Vaidoso, Márcio faz questão de usar figurinos inspirados nos macacões originais de Presley. São peças em sua maioria garimpadas em lojas especializadas, com valores que giram em torno de dois mil reais, enquanto alguns são encomendas exclusivas – como é o caso do modelo “Aloha Eagle”, feito todo de cetim branco e pedrarias – que o cantor confessa lavar à mão, com a ajuda de uma escova de dentes após cada apresentação.

Mas Márcio não se limita a imitar Presley. Há algum tempo decidiu inovar em sua performance e introduziu algumas músicas sertanejas, como o hit “Camaro Amarelo”, ao repertório de sua apresentação. O que a princípio parecia uma receita para o desastre, tornou-se uma febre entre os espectadores, que diante da comicidade da apresentação riem e aplaudem seu hibridismo artístico. “Enquanto eu estiver aqui, fazendo os passos do Elvis, eu estou fazendo uma reprodução. Agora, quando eu subo nesta lixeira (ele escala a lixeira) e começo a cantar o “Camaro Amarelo” e pulo dentro do ônibus com uma capa de Superman, aí eu sou artista. Você já viu em algum lugar do mundo o Elvis Presley cantar sertanejo universitário?”

Hoje com quarenta anos, “4.0” como ele diz, Márcio mora com sua mãe adotiva – uma senhora de filosofia krishna que o adotou logo que chegou a São Paulo –, estuda artes cênicas, e confessa não ter planos ambiciosos para o futuro. Seu objetivo é todo dia poder trazer o novo, inovar sua experiência estética, e quem sabe trabalhar com teatro ou cinema.

Homem, artista, filósofo, e poeta, Márcio personifica todas as facetas que compõem sua personalidade. É um homem extrovertido, simpático e conversador, que de cima de seus 1,70 metros (incrementados por mais 5cm do salto de suas botas brancas) dá graça à cidade com seu talento.

Márcio Aguiar, o Elvis da Paulista é assim, meio homem, meio mito, como o próprio Rei.

A vitória por W.O.

Ele é engenheiro agrônomo e leva uma vida bastante tranquila no interior de São Paulo, porém, claro, nem sempre foi assim.

Wanderley Onorato é filho, neto e sobrinho único. Seu sobrenome foi trazido por antepassados imigrantes italianos em navios que partiam da Itália carregados de esperança de um futuro melhor. Nasceu em 1955 e cresceu com a família por perto em um bairro operário da cidade de São Paulo, cujas ruas, ainda de terra, eram repletas de sobrados. Wanderley relembra com carinho e saudades dos almoços de domingo na casa da avó materna e da gemada matinal no avô paterno. Durante sua infância, frequentou colégio de padres maristas e, inclusive, chegou a ser coroinha da igreja do bairro.

Um episódio, porém, separa sua infância em duas partes. Aos 13 anos, na volta para casa da escola, enquanto se esforçava para capturar uma lagartixa em um poste, viu aquele momento escurecer em questão de segundos. Quando a luz começou a retornar, se deu conta de que não estava mais na mesma rua, em frente ao mesmo poste. Estava, agora, deitado, cercado por pessoas desconhecidas e aparentemente com pressa, preocupadas, olhares atentos em seu rosto – e em seus sinais vitais. Wanderley tinha sido atropelado por um caminhão e ficou gravemente ferido. Conta se lembrar de ter ouvido enfermeiros e médicos comentando o quão impressionante era o fato de ele estar vivo.

Aos 16 anos de idade, já cansado de frequentar a mesma escola de padre, Wanderley se mudou para um colégio do estado: Alexandre de Gusmão. Foi uma experiência totalmente nova – e uma das melhores de sua vida. Escolheu estudar no período noturno, o que o colocou em contato com colegas que já viviam de seu próprio suor. Esses anos de colégio lhe renderam aprendizado, maturidade, boas histórias e amigos melhores ainda.

Naquela época, cursar uma universidade não era tido como prioridade. Se fosse pela vontade de seus pais, Wanderley teria ficado em São Paulo para ajudar a família nos negócios – eles possuíam uma barraca de alimentos variados na feira. Entretanto, foi contra seus pais e demais familiares e decidiu dar um rumo diferente para sua vida.

Um ônibus interestadual levou Wanderley até o Rio de Janeiro para prestar o vestibular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ). A prova foi aplicada em pleno Maracanã, na parte da tarde, sob um sol de rachar. Mas valeu a pena. Pouco tempo depois, veio o resultado, e ele tinha sido aprovado no curso de Engenharia Agronômica.

Foram 4 meses até se mudar para o Rio de Janeiro. Seus pais o levaram até a cidade e, por questões financeiras, acomodaram seu filho em uma vila do subúrbio carioca chamada Seropédica, nos fundos de uma humilde residência, onde morava um casal de senhores. O local em que passou a habitar era, antes, um galinheiro que foi reformado e serviu de moradia para o estudante durante dois anos.

Sua vida acadêmica não foi nada fácil. Wanderley não recebia ajuda financeira de seus pais, pois eles não estavam em uma situação que permitisse custear o filho em uma cidade cara como o Rio de Janeiro. Por isso, o estudante teve que se virar como pôde. A começar com o aluguel que pagava para o casal de senhores. Para conseguir chegar ao fim de cada mês com o pagamento, o jovem realizava alguns trabalhos em troca de pouco dinheiro. Inicialmente, Wanderley utilizava seu tempo livre trabalhando na própria faculdade. Lavava becker, tubos de ensaio e provetas no laboratório. Essa atividade lhe garantia, também, o café da manhã e o almoço no chamado bandejão. Realizava, paralelamente, alguns outros bicos em comércios da região.

Após dois anos, o estudante conseguiu uma vaga no alojamento da universidade (pois passou a organizar e limpar a sala de leitura da faculdade no período da noite) e finalmente deixou o quartinho onde morava. Para se sustentar, Wanderley passou a realizar outras atividades: juntamente com um amigo, comprou uma máquina de silk screen e, com ela, estampava camisetas, chaveiros e demais objetos para, então, vendê-los; vendia perfume nas proximidades de bordeis até a meia noite. Depois, seguia para boates da cidade onde tirava fotos dos clientes com máquina Polaroid e as vendia.

Wanderley também participou ativamente de diversos movimentos estudantis, além de protestos durante o período militar que marcaram a história. Sentiu na pele o preço da democracia: “Já levei muita borrachada de polícia, fomos perseguidos pela cavalaria, fui levado para interrogatórios em quarteis…”, conta. Entretanto, diz que tudo isso valeu a pena:  viveu o fim do regime militar e o início de uma era marcada pelo direito conquistado da liberdade de expressão.

Quatro anos se passaram e Wanderley, que foi o presidente da comissão de formatura, dava adeus à cidade maravilhosa. De volta para São Paulo, trabalhou em diversas empresas  já na sua área. Foi nessa época que passou a fazer parte de um novo grupo de amigos e, entre eles, estava sua futura esposa.

Wanderley viu sua vida mudar aos poucos. Compreendeu que todo o esforço que já havia feito até ali, estava valendo a pena. Foi quando resolveu dar mais um passo a diante: fez uma segunda graduação em gastronomia e pós-graduação em marketing, atributos que contribuíram para o convite que recebeu para ser professor em um curso de MBA.

Casou-se. A garota mais “espivetada” de seu grupo de amigos tornou-se sua esposa. Com ela, Wanderley teve dois filhos. O mais novo nasceu na mesma época em que foi contratado para trabalhar em uma multinacional de peso, a Monsanto, onde trabalhou por mais de 10 anos. E tudo pareceu que tinha dado certo. Os perrengues enfrentados durante a faculdade serviram como lição e base. Porém, um episódio veio para dividir novamente sua vida em duas partes. Após algumas suspeitas e diversos exames, descobriu-se que sua esposa, Thelma, estava muito doente. O câncer tinha feito uma nova vítima: uma mãe de dois filhos nas idades de 13 e 16 anos. Foram meses lutando contra a doença. Meses frequentando consultórios e hospitais. Meses de pesadelo e sofrimento.

Apesar de todo o esforço feito, em janeiro de 1995, Wanderley e sua família perderam Thelma para o câncer. O fato abalou a família toda, e o engenheiro se viu sozinho, com dois filhos revoltados com a perda da mãe. “Do dia da morte da minha esposa em diante, me tornei uma nova pessoa. Eu tinha dois filhos adolescentes para criar. Sabia que não poderia fraquejar, pois eles precisavam muito de mim. E eu fui em frente”.

Alguns anos se passaram, e Wanderley viu algo acontecendo aos poucos que poderia mudar o rumo de sua vida – novamente. E ele estava certo. Em 1999, o engenheiro casou-se pela segunda vez. Entretanto, não houve a necessidade de conhecer e conquistar a família da noiva, pois já havia o feito: sua nova esposa era prima da primeira. E todos aprovaram o casamento! Especialmente seus filhos.

Atualmente, após já ter morado em cidades como Rio Claro e Goiânia, Wanderley e sua esposa Gilcy moram no interior de São Paulo, em uma cidade chamada Serra Negra. Ele, consultor de negócios e palestrante, atua também no ramo de alimentos. Já casou seus dois – e únicos – filhos e diz esperar ansiosamente pelos netos.

“Uma caipira metida a viver na cidade grande”

Era uma terça-feira, dois de outubro de 1968. Na Rua Maria Antônia, centro de São Paulo, as aulas corriam normal na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (Universidade de São Paulo), até o momento em que pedras começaram a estilhaçar as janelas. Era o CCC, Comando de Caça aos Comunistas. Naquele momento uma guerra entre a esquerda e a direita começava, e fugindo dela estava Maria Ivoneti Busnardo Ramadan. “Como eu poderia esquecer essas coisas, que fazem parte da minha história e do país?”, comenta a professora de língua portuguesa.

Guiada pelo sonho de estudar na melhor universidade de São Paulo, Ivoneti, ou como ela assina, Ivy (apelido dado por uma amiga há mais de vinte anos), saiu de Pindorama, uma pequena cidade do noroeste paulista, no dia 13 de dezembro de 1965 em direção à capital. Lembra-se da data porque é dia de Santa Luzia, protetora dos olhos, e nesse dia sua mãe sempre falava para ela e seus três irmãos lavarem bem os olhos, e cantava versinhos como “Santa Luzia passou por aqui, com seu cavalinho comendo capim”. O motivo? Ela tinha contraído tracoma, uma doença oftalmológica contagiosa, e receava que acontecesse o mesmo com os filhos.

Identificando-se como “uma caipira metida a viver na cidade grande”, morou primeiro em dois pensionatos próximos à faculdade. Com o tempo, porém, foi ficando independente e quis sair de lá. Então, mudou-se com uma amiga para um apartamento na Rua Doutor Vila Nova, afinal, “eu não vim aqui para São Paulo só para estudar. Eu vim para me divertir, aproveitar bastante o buchicho da Rua Maria Antônia”, confessa com uma risada contida.

Parafraseando uma frase de Guimarães Rosa – “eu saí de Minas mas Minas não saiu de mim” -, Ivonete afirma que, por mais que sua cidade natal seja um cenário estranho para ela, “eu ainda estou lá e Pindorama ainda está junto comigo”. Lá, pertencia a um grupo de estudantes que promoviam eventos culturais, o MUP (Movimento Universitário de Pindorama). Todos tinham um pendor para a esquerda, incluindo estudantes de engenharia, medicina, cursos de humanas e outros. Eles organizavam semanas culturais nos períodos de férias escolares, janeiro e julho, as quais sempre acabavam, “como vocês dizem hoje, em uma balada, mas uma balada muito sã. Eram bailes, com brincadeiras dançantes. Se dançava bastante também, se divertia muito”.

Era simpatizante dos movimentos de esquerda, mas não militante. Em São Paulo, as pessoas se afastavam do centro para poder discutir as questões políticas, e os locais onde elas se reuniam eram chamados de aparelhos. Havia um no Sumaré, do qual participou algumas vezes.

Escolheu Letras porque, dentre os tradicionais cursos oferecidos na época, esse era o que mais lhe chamava atenção. Outro fator que pesou na decisão foi a influência de uma professora que lhe deu aulas de português dos 11 aos 14 anos, com a qual mantém contato até hoje. Recorda-se de uma vez em que Dona Sílvia colocou os alunos em um trem com destino a Araraquara, cidade próxima a Pindorama, para ver a conferência de um professor português sobre Almeida Garret. “São eventos que vão marcando você. Você vai acumulando os prazeres ou desprazeres que esses eventos vão proporcionando, e lá na frente opta por uma coisa ou por outra”.

Questionada se hoje faria algum curso diferente, visto a variedade de opções que é oferecida, dá uma resposta inusitada: seria patinadora no gelo. Ao descobrir o corpo na yoga viu quão maravilhoso ele é, e gostaria de juntar as lições deste com as lições da arte. “O que aquelas meninas fazem é demais. Elas voam”. Em seguida, cita as quatro fases da borboleta e diz que está chegando na última, quase voando.

Já no quarto ano de faculdade começou a dar aulas. Não de português, mas de francês, para as turmas da noite de uma escola pública na Mooca. Lembra com orgulho daquela época, em que o ensino público era de excelente qualidade. “Todo dia a gente lê no jornal sobre as mazelas da educação. Eu falo isso com uma pontada no coração. Como é que esse estado de São Paulo permitiu que um dos ensinos públicos mais sérios do país fosse aos poucos se esfacelando?”, declara com um tom de indignação.

Trabalhou 25 anos na escola pública. Hoje, ministra aulas de Língua Portuguesa na Faculdade Cásper Líbero para os alunos do primeiro ano de jornalismo, no período diurno, com os quais nutre uma relação complicada – mas não de sua parte. Ao assistir uma de suas aulas tive a sensação de “já vi esse filme antes”, tanto da parte dos alunos quanto da sua. Saí com o pensamento de que as coisas se repetem, como em um ciclo. Assim como em meu ano, tinham os alunos interessados que não tiravam os olhos dela e aqueles que não tiravam os olhos dos celulares. O silêncio era exceção em meio às conversas paralelas constantes. Falando sobre textos descritivos, Ivoneti repete exemplos e expressões que usou em meu ano, cita diversos autores e obras, mantém uma linha de raciocínio constante, mas não linear. Talvez esse seja o motivo para a falta de atenção de muitos alunos.

Ayelen Cerda, ex-aluna de Ivy, não a entendia direito no começo. Achava que ela queria passar algo muito especial para os alunos mas não conseguia, confundindo-se no próprio discurso às vezes. “Com o tempo eu fui entendendo que ela não era uma professora que trabalhava matéria, ela trabalhava uma construção de ideias, com o pensamento do aluno, talvez uma coisa que muitos iam perceber só em alguns anos”. Lembra de um episódio em que chegou na sala e a professora estava sozinha, com um diário comprado em Havana, fazendo anotações sobre o contato das pessoas com Deus. Ela parou Ayelen e mais duas meninas para pegar seus relatos sobre o assunto, e então começaram a discutir questões sobre Deus em relação à politica, sobre Cuba. Desde aquele dia, sempre que se encontram Ivoneti a cumprimenta, pergunta como está e elas conversam. “Ela é muito humana. É uma figura muito diferente, realmente uma sonhadora, e eu admiro isso nela”. Para Ayelen, ela se envolve com o aluno de uma forma humana, não se limitando à relação mestre-aluno. “Ela expande isso para um dialogo mais direto, mais humano. Ela é uma pessoa especial”. E completa: “Ela é uma professora que chegará a inspirar os alunos que entenderem sua viagem”.

Ivoneti fica em dúvida se essa viagem é um defeito ou uma virtude, mas sabe que não vai mudar, e não quer. “Eu tenho uma certa má fama de gostar de devanear, de coisas abstratas, ideais abstratas”. No almoço daquele sábado isso tinha sido discutido entre os familiares, criticado inclusive. Sua irmã, Alba Busnardo, leva um tempo até encontrar um defeito que lhe caracterize, mas conclui: “Às vezes um pouco desligada, desatenta”. A sobrinha Érica confirma: “Às vezes a gente conversa com ela e parece que ela está em outro mundo”. E se alguém achar que ela se incomoda com isso está errado, pois ao falar do assunto é um suspiro sonhador que encerra a frase. “Eu entro numa elucubração com as coisas que eu leio. Eu acho tão maravilhoso eu poder me distanciar do mundo e ficar pensando”.

Não sabe justificar essa propensão aos devaneios, mas acredita ser pela forma como foi criada. Quando nasceu, seus pais eram mais velhos e seus irmãos já eram grandes, e naquela época não existia Jardim de Infância em Pindorama. Com isso, não desenvolveu o convívio com outras crianças, tornando-se ensimesmada, voltada para si própria, fechada. Célia Teitelbaun, uma amiga de longa data, confessa que a única queixa sobre Ivoneti é o fato dela não contar suas intimidades. Ela reconhece que não tem jeito para contar algumas coisas, mas defende que já melhorou. Recorda-se das palavras da mãe contando que, para costurar, colocava-a sentada ao seu lado e ela ficava quietinha, olhando o entorno.

Sua mãe não sabia ler nem escrever, mal assinava o nome, mas foi ela quem colocou o primeiro livro em suas mãos, “O gato de botas”. Já o pai sabia ler e escrever sem nunca frequentar uma escola, aprendeu na casa de um professor. Reconhecendo a importância da leitura, ele nunca deixou de comprar aqueles livros vendidos de porta em porta, como enciclopédias, Alelo Universal, Barsa, e a coleção completa de Monteiro Lobato. Fazia questão de tê-los em casa. “Sou filha de desletrados, mas posso dizer que foram eles que me colocaram no caminho das letras”, conclui Ivoneti com gratidão. “Essas coisas são simples na vida de cada um, mas são marcantes”.

Além da linguagem das palavras a professora tem aprendido a linguagem do corpo, e para isso faz yoga e alongamento. “Eu aprendi muito sobre mim mesma olhando para o meu corpo, vendo as limitações dele. Lendo as emoções que tomavam conta de mim quando eu não conseguia fazer um exercício ou outro, os pensamentos que tomavam conta da minha cabeça quando eu estava lá entre as pessoas”. A seu ver, o corpo é uma excelente ferramenta para conhecer as lacunas e falhas inerentes a todos nós. “Todos somos limitados, mas você pode adotar um lema, que está muito bem encerrado na frase ‘ainda não consigo’. Ainda não consigo, mas pode ser que eu consiga”. Mesmo gostando de filosofia, acredita que não é com ela que aprendemos certas coisas. “Certas coisas é só na carne da vida mesmo, na concretude das coisas”.
Em um momento da nossa conversa, Ivonete levanta do sofá, estica as mãos para cima como se fosse alongar e, aos poucos, vai descendo até tocá-las no chão, sem dobrar o joelho. Para ela, fazer esse movimento sem dificuldade é uma vitória. “A verdadeira competição é aquela que você faz com seus próprios limites”, elucida. Além de alongar o corpo, sonha também em alongar a mente, a visão de mundo e a espiritualidade. “São coisas que não se separam, e hoje nós estamos separando, compartimentando tudo. Uma hora a alma e o corpo se encontram, e ai é plenitude”. Se conseguir isso antes desse encontro chegar, afirma que morrerá feliz. “Sou metida, sou ousada. Eu quero me alongar para chegar longe, naquilo que eu acho que seria o ideal de vida para mim.”

Pedindo para que eu não confundisse espiritualidade com religiosidade, salienta que faz da religião um reduto, uma fortaleza. É católica desde sempre, mas não praticante. Gosta muito de uma cerimônia chamada “Renovação da Água e do Fogo”, realizada no Sábado de Aleluia, porém não participa todos os anos. Vê as religiões como o exercício de um ritual, “como se você estivesse lá naquele momento para agradecer todas as benécies da vida”, desde o sol que brilha lá fora até um encontro como o que tivemos naquele dia, julgando-o muito prazeroso. “Pequenas fagulhas do divino que permeiam a nossa vida, e a gente tem que ter sensibilidade para percebê-las”. Para não deixar de citar um autor, fala de Olgária Matos e seu conceito de acosmia, o qual define uma dificuldade em entender que lá na frente todos são iguais. “É a perda desse paradigma que cria os preconceitos, as intolerâncias, sejam de religião, de raça”, constata a sonhadora com um certo tom de desilusão.

Desilusão com um mundo que ainda não conseguiu colocar todos em um mesmo patamar, seja de progresso, cultura ou espiritualidade. Um mundo em que acreditar no ser humano “é uma coisa bobinha, irrelevante”, e demonstrar sentimentos “é quase um tostão furado”. Um mundo em que o que vale é ser “winner”, vencedor.

Enxergando uma falência de valores nos dias atuais, acredita que o único caminho para estancar a violência que nos é inerente é o afeto. “O homem é um ser de ternura, e deveríamos nascer com essa propensão pros afetos. Um se deixar afetar pelo outro, pela humanidade do outro”.

Apesar de pertencer a uma elite de São Paulo, Ivoneti não é materialista, qualidade ressaltada pela amiga Célia. Defende que não é necessário muito para se viver. Chega até a comentar que, se quisesse comprar uma bolsa Prada com o salário da Cásper, poderia fazer uns ajustes no orçamento para adquirir este objeto de luxo, mas que não seria mais feliz por isso. Quando, em 2011, surgiram denúncias de exploração do trabalho na produção de roupas da Zara, ela foi até uma loja, pediu para que chamassem a gerente e lhe disse que nunca mais compraria roupas daquela marca. E de fato, nunca mais comprou. “Essas pequenas ações políticas atenuam um pouco a minha dor, a minha ansiedade, a minha culpa de não atuar mais para um mundo mais justo”, destaca, com uma sensatez pouco comum entre os mais velhos.

Ainda nesse contexto de transformação, crê que apenas as mulheres podem consertar o mundo. Mas não é competindo com os homens nem sendo feministas radicais (“com as quais eu não me dou bem de jeito nenhum”), é explorando essa “característica maravilhosa do feminino que é a de agregar, unir, tecer laços”. Julga ser uma pessoa agregadora, e ela realmente é. Soube de um caso em que ela ligou para o celular de um aluno só para saber se ele e a namorada tinham se resolvido. Em outro, ao ver uma aluna chorar por um término de namoro, foi até ela e perguntou o que estava acontecendo, conversou, aconselhou. Coisas de amigo, coisas de Ivoneti.

Uma característica que lhe representa é sensibilidade. Wellington Andrade, seu colega de trabalho e de profissão, concorda: “Quando você conhece a Ivonete percebe o quão adorável ela é, quão inteligente ela é, quão sensível ela é”. Isso aconteceu em 1997, mas não houve uma identificação imediata. Ela era mais velha, fechada, sofisticada no gesto, refinada na forma de se vestir e falar. Ele, contracultura, convivia com pessoas mais alternativas. Apesar das diferenças, porém, o gosto pela literatura os aproximou. Hoje, se diz encantado por essa grande figura.

Mesmo com uma aparência frágil, Ivoneti afirma gostar de viver perigosamente. Morando na rua mais perigosa de Higienópolis, adora andar pelo bairro à noite durante o outono e o inverno. Sente prazer em passar e sentir a fragrância da Dama da Noite, uma espécie de flor que exala um delicado perfume enquanto a lua enfeita o céu. “Os pequenos prazeres da vida é que dão sentido a ela”. Além disso, gostaria de viver junto a uma comunidade que não a sua. Por exemplo, 15 dias, um mês, no fundo do Amazonas, ou em um campo de refugiados da Palestina. Planos incomuns para uma senhora que se auto-intitula sexagenária, anciã, idosa, mas que de forma alguma revela sua idade exata.

Mãe de três filhos – Tomás, Lucas e Taís –, mostra-me uma pequena escultura de ferro que está exposta no aparador em frente à porta, presente de Dia das Mães. Nela, a progenitora dança com os três filhos em forma de ciranda. Uma peça delicada e simbólica, que recebe olhares de ternura de Ivoneti, que a manuseia com cuidado. Após explicar seu significado, conclui: “Dançar é uma forma de agregar. Você dança, e dançando você encontra Deus”. Separada, mantém uma boa relação com o ex-marido: “Como eu posso ser inimiga dos pais dos meus filhos? Jamais”.

Com 1,64m, queria ter três centímetros a mais. Seus 57 quilos não são problema, pois os informa com naturalidade e sem tripudiar. A única parte de seu corpo que mudaria é o nariz, gostaria que fosse menor. Filha de pais brasileiros filhos de italianos, tem nos olhos a marca da descendência: um azul tão claro quanto as águas de Fernando de Noronha, quase translúcido. Contrastando com a delicadeza destes, seus cabelos carregam um tom forte e escuro de vermelho. O conjunto logo diz quem é Ivoneti, Ivy ou até mesmo Capitivy (Capitu + Ivy, pois adora esse mistério de Machado de Assis): uma mulher sensível mas forte, sonhadora que se fecha em seus próprios sonhos para não ser incomodada. Se fosse para compará-la com algo seria com uma obra literária mal compreendida: sua essência é única e vanguardista, mas poucos conseguem captá-la.

Perfil: A solidez almejada na dureza de uma vida como a rocha

Faculdade Cásper Libero;

Aluno: Júlio José Teixeira Duarte Moredo;

Curso: Jornalismo 2º ano B;

Matéria: Técnicas jornalísticas II;

Professor: Sérgio Villas boas.

    Neste perfil, tratarei ainda que sucinta e insuficientemente da vida de meu avô, Silvio do Nascimento Moredo, o escolhido para o desenvolvimento do método e proposta deste trabalho. Devido às dificuldades sucessivas encontradas para a escolha ideal, optei por uma solução simples e longe de ser insatisfatória.

Homem afável, de métodos simples e corteses, com a elegância dos traços calejados de uma trajetória única, Silvio nos convida com seu olhar pequeno e profundo, em sua estatura baixa e voz calma, tal qual sua personalidade, a viajar por um mundo unido por dois oceanos, dois hemisférios em uma única personificação de luta.

Não tão somente por ser meu avô, Silvio me caiu “Como uma luva”, por ser sua história tão singular e ao mesmo tempo tão intima da de muitos imigrantes que escolhem o Brasil como casa, transformando-o em algo diferente, nem melhor nem pior. Com garra, fé, esperança e, acima de tudo, laços familiares de suas origens lusitanas.

Nascido na pequena aldeia de Brunhoso, região de Trás-os-Montes no nordeste português, fronteira com a Espanha, Silvio viveu e conviveu com tempos de guerra misturados com singelos laços da paz em seu bucólico povoado. Permeando por lembranças cruas desse passado remoto, porém vivaz.

Em sua bagagem, “Seu Moredo” traz consigo alegrias e tristezas, sucessos e frustrações, mas nenhum arrependimento. Oriundo de família de pai pedreiro e escultor herdou o gosto pelo oficio como era costume da época, e, junto a seus outros oito irmãos, estudou pouco, trabalhou muito e viu a vida transcorrer por diversos rodamoinhos que o destino lhe pregava, sempre com bom humor, humildade e sabedoria.

O único arrependimento, talvez, diz ele, foi ter tido pouca chance de se aprimorar nos estudos. Dono de uma cultura geral e visão de mundo invejáveis para suas oito décadas de vida, Seu Silvio só cursou escola regular ainda em tempos de Lusitânia – Até o 3º primário. Sonhou ser geógrafo e arquiteto, mas foi pedreiro, escultor, diretor de futebol e empresário, em uma caminhada que só uma vida dinâmica e uma pessoa que sabe encara-la podem proporcionar.

Nesse longo e suficiente tempo, segundo o próprio, ergueu um império empresarial famoso na região norte de São Paulo, a “Granitos Moredo, nome forte perpetuado junto à Paulicéia pelos imensos serviços prestados em obras publicas relevantes para o desenvolvimento que a cidade atravessou nos anos 60-70, obras como o Marco Zero e o Anhangabaú falam por si.

Sua eterna paixão filantrópica, a Lusa, não ficou de lado em quase 20 anos de dedicação ao futebol de base e profissional do Canindé. Feito sócio do clube ainda nos tempo que sua sede era no centro, remontando uma São Paulo quase esquecida em termos de paisagem, tempo e espaço. Tem um nome grafado com letras douradas na história Rubro Verde.

Deixando um pouco de lado suas duas paixões institucionais, “Seu” Silvio me convida para o almoço, metódico para com horários principalmente em refeições, meu avô me passou isso desde a tenra infância, no tom do “Diz-me com quem andas e te direi quem és”, sempre me pareceu um homem sensível a tudo que se passa a sua volta, evitando exageros e comprometimentos pessoais com quem não lhe agrada com totalidade, deixando de maior herança a meus primos e a mim essa sagaz teia de jogo de cintura.

Apaixonado por culinária, nunca soube fritar um “obinho” sequer (nota-se, como não poderia deixar de citar, a persistente dificuldade dos portugueses do norte em pronunciar o V nas palavras, sendo substituídos pelo B, uma clara influência castelhana), porém é aficionado em  experimentar com gana tudo o que a vida lhe reserva diariamente, e, sendo pontual, mesmo que no serviço diário ainda realizado em sua empresa, fica mais fácil de saborear com ele suas histórias em meio ao simplório arroz com feijão (que pra ele cai como Caviar) do refeitório da “Granitos”, alcunha da empresa que elevou seu sobrenome.

Friorento e metódico, após o desjejum, ele carinhosamente descasca com seu canivete antigo uma pera e uma ameixa para a sobremesa, já de volta em sua sala de oficio, oferecendo como de costume aos seus netos sempre a parte mais “carnuda” da iguaria, cobrindo seus pés com mais uma meia guardada na gaveta, o frio, ele jura ser oriundo dos perversos invernos trasmontanos.

Em seguida, continuamos a debater sobre as lendas que se tornaram mito no Canindé, suas idas e vindas com o garoto Enéas ao quartel do exército pós jogo com o Corinthians no Pacaembu (Grande jogador luso na década de 70), do desenrolar regado a dominó dos “Vales e bichos” de atletas como Basílio, Piau, Denner…

Sua participação apressada no célebre título paulista dividido de 1973, em que o Santos de Pelé parou nas contas errôneas do arbitro Armando Marques, que encerrou a partida sem se ter vencedor, ao relembrar, ele, com seu sorriso maroto e  bonachão, garante a mim que foi o primeiro a ordenar que vários jogadores no vestiário da Lusa fossem de cueca para o ônibus, evitando que o mesmo Armando desse conta do equivoco.

Após o delicioso papo (que ele provavelmente já havia esquecido que era para fins jornalísticos e acadêmicos), volta-se a mim apreensivo. Após olhar no relógio turco que ganhou nas inúmeras viagens acompanhando a Portuguesa em excursões mundo afora: “Julinho, está na hora de Passar a Bassoura”, que logicamente para um filho duplo que sou dele, significa inspecionar a área de produção dos blocos de granito e polimento das pedras.

Quatro e meia da tarde: hora de ir embora após a “Bassourada” na produção. Regrado como sempre, ele simplesmente esquece-se de que está comigo e se despede com sua tradicional dureza e estabano ibéricos. Afirmo que o dia junto a ele ainda não havia terminado e que ele poderia ficar tranquilo que hoje o levaria de carro para sua casa no bairro da Vila Maria, bem a tempo de ele dispensar o motorista que já o leva e traz a cinco anos por problemas de visão de meu avô. Problema esse que se iniciou com um fatídico estrabismo que se perpetuou após uma má cirurgia de correção da vista aos 8 anos, em plena 2ª guerra mundial no atrasado Portugal de Salazar, ainda mais no ermo e fronteiriço

Tras-os-Montes.

Cicatrizes físicas que comprovem uma vida bela não seriam necessárias para qualquer parente ou amigo próximo de Silvio, amigos estes que ele tem aos montes, abismaste a quantidade de colegas feitos de Pirituba a Santana, do Bom Retiro ao Brooklin, por essa portuguesada São Paulo afora. A quantidade de conhecidos é tamanha, que uma vez referi seu nome em um boteco no longínquo Rio Pequeno, e o dono portuga o conhecia por apelido. Brinco com o velho SIlvio que se ele usasse o Facebook teria perfil de pessoa publica.

Ao contar-lhe isso mais uma vez em meu carro levando-o pra casa, vaidoso e discreto como de costume, diz-me que isso se deve “A muito trabalho, seriedade e carisma, que só poucos sabem ter para com todos”, concluindo: “Posso não apreciar todos, mas todos apreciam-me”, rindo-se todo depois da filosófica conclusão. Carisma este comprovado em jogos da Lusa, nos que ainda vai ao estádio, meu vô Moredo é simplesmente vereador em campanha por onde passa nas dependências rubro-verdes.

Quase chegando a sua residência, em plena Dutra, pergunto-lhe se há algo que ele gostaria de ter corrigido em suas oito décadas e o comentário é revelador: Se por um lado (e que minha querida avó Judite não leia isso), Silvio é sábio e austero, por outro sempre teve fama de mulherengo entre estes tantos amigos, e, em suas muitas idas e vindas pelo mundo, me confidencia que se apaixonou uma vez por uma gueixa nipônica em Tóquio, gueixa essa que se atraiu com a quantidade de pelos no tórax de meu avô, e que ele prontamente correspondeu com um promiscuo recado ao tradutor na ocasião: “Se ela quiser descer mais um pouco, há muitos outros”. Não tendo, por infortúnio, dinheiro na hora “H”, pois  havia deixado a carteira no hotel (sorte da vovó dessa vez).

Outro (quase) arrependimento, já eu junto ao estacionamento da garagem, é de não ter aconselhado a arquiteta italiana Nina Bo Bardi a escolher uma forma mais pura de granito para adornar o recém-construído MASP nos anos 60, que a Granitos Moredo ajudou a erguer e que ele e Nina foram escolher na pedreira da empresa. “Juro ter visto um bloco mais formoso, quadrado, que demonstraria mais o que é essa cidade maluca, mas ela era doutora, estrela do Chateaubriand, eu era só o pedreiro, Júlio, não palpitei, mas ficou engasgado”.

Não poderia esperar nada além dessa sugestão de meu avô, arquiteto de sonho aconselhando arquiteta doutora para se colocar algo menos artístico e mais vivaz, tal qual a pedra e um ser humano. Caí em mim e percebi ali, coincidentemente na porta do elevador após mais esse “causo”, que minha missão junto ao meu portuga estava concluída.

Consciente ou não, meu avô encerrou seu próprio perfil com mais uma de suas mil lições de vida dadas a mim, como as histórias de fantasmas e lendas portuguesas nas noites em seu sitio (linda infânica), logrou chegar a esse nível de percepção do que foi (e ainda é) a vida para este peculiar patrício luso.

Hoje ainda proprietário de sua fábrica, ele aparenta repensar diariamente sua vida, desde os “Tempos de Rio Tietê limpo”, quando atravessava cinco pontes pênseis ao longo de sua várzea para ir da Vila Maria ao Tatuapé.  Teve apogeu e declínio, e agora, estabilidade para aceitar o que viu e aprendeu da vida.

Com 4 filhos, 6 netos e 3 bisnetos (com o 4º a caminho), cumprimentado cordialmente todo santo dia do operário a secretária, meu vô Silvio é um romântico trovador da popular diligência sem prepotência, viva prova da cidade que ajudou a erguer.

Faces de uma vida

“Ana Beatriz, que horas você chega? É que eu vou precisar de uma ajuda para fazer nove exercícios de matemática,  a professora passou resposta, mas eu quero entender como ela chegou no resultado .. você me ajuda amanhã?”. É com essa frase que apresento a Di.

Conheço-a desde que eu tinha cinco, quase seis anos de idade. Di ou Dida é o apelido carinhoso de Diana Maria de Sousa, de 38 anos de idade. Di é uma moça de 1m58cm . Com seus olhos esverdeados, cabelo ralo, liso e da cor escura, Di não aparenta a idade que tem, recém completada no dia 02 de junho.  Ela é secretária do lar na minha casa, mas faz tempo que eu a considero muito mais do que isso. Tenho-a como uma amiga e como uma segunda mãe. Acima de tudo, Diana é uma das pessoas responsáveis por me formar como ser pensante, além de ter me ensinado vários dos valores que levo comigo e que pretendo ensinar aos meus filhos.

O diálogo com o qual eu iniciei o perfil, foi um pedido que ela me fez há pouco, via telefone. 2013 é um ano muito especial para a Di, afinal, foi neste ano que ela resolveu retomar os estudos, depois de passar mais de 25 anos longe de uma sala de aula. “Tem gente que acha que é besteira, mas ainda vou viver muito tempo .. não dá para ficar nessa condição, quero fazer algo da minha vida”, conta. Nasceu e morou na cidade de Minas Novas, localizada no Alto Jequitinhonha, interior do estado de Minas Gerais. Resolveu mudar de lá aos 23 anos, quando resolveu morar na capital financeira do país, São Paulo.

Não estudou por falta de oportunidade, não de interesse, diz. Sua cidade era muito pequena, e a única escola que tinha perto da sua casa, só lecionava até a quarta série. “Para não sair da escola, fiz a quarta série duas vezes … eu gostava muito de estudar, mas não tinha mais nenhuma escola por perto, por isso que não estudei mais”. Começou a trabalhar com 13 anos, em casas de família. Ajudava  a família, que era constituída por ela, sua mãe Ana Pinto de Azevedo, seu pai e seus sete irmãos. Seu pai era o segundo marido de Ana, pois seu primeiro morrera anos antes de Diana nascer, deixando quatro filhos de Ana sem pai.

Di teve dois filhos antes de vir para São Paulo; Deane e Wagner. Veio para São Paulo à procura de melhorar a vida daqueles que ela tanto amava. Perdeu o pai, que não era tão próximo, depois que chegou na cidade. Ele morreu de doença de Chagas. Enquanto as pessoas sofriam em Minas Novas, Di não fugia à luta. Depois de trabalhar em algumas casas de família, chegou à minha residência. E foi aí que o laço começou.

Laços

Conheci Di no dia 14 de janeiro de 1999, quando ela tinha apenas 24 de idade. Segundo ela, a primeira frase que ouviu eu dizendo, foi “Ai Lê, é sempre a mesma coisa … ‘me ajuda’,’ põe na minha boca'”, frase crítica dirigida à minha irmã, Ana Letícia, que pedia para que a Di fizesse lasanha e colocasse na boca dela, como qualquer criança preguiçosa de três anos costuma fazer.  Não temos mais tanto tempo livre, mas quando eu a ajudo em alguma tarefa, tendo como pretexto uma boa conversa, Di ouve o que eu tenho a dizer e chorar, enquanto eu escuto suas histórias, últimos acontecimentos envolvendo a Dê, apelido de sua filha, a escola que ela frequenta , algum problema envolvendo o Edmilson, seu namorado, ou os vários relatos dela em relação à minha infância em conjunto com a das minhas duas irmãs e com a Dê. Duas delas de sangue e mais novas do que eu, Ana Letícia, como eu já citei, e Ana Maria. A outra, que é a Dê, é a minha irmã de consideração, visto que convivemos juntas, morando na mesma casa, ao longo de oito anos.

Atualmente, Deane Marques de Sousa, 20 anos, não mora mais com a gente, e certamente, é um dos temas que mais preocupa a Di. Procurando ter uma formação diferente da mãe, resolveu fazer faculdade de  Educação Física, na Universidade Paulista (UNIP). Teve problemas de saúde, depois que morou sozinha, e por este motivo, resolveu sair de São Paulo.  Hoje vive em Sorocaba, longe de toda a família, porém, próxima ao namorado.

                Acidente

Em março de 2001, enquanto trabalhava, mais eufórica do que nunca, afinal, seus filhos e sua mãe ainda estavam em São Paulo para visitá-la,  Diana recebeu uma ligação que mudou para sempre a sua vida. O telefone tocou e uma voz desesperada misturada com prantos gritava o que tinha acontecido do outro lado. Um acidente de carro. A pessoa que dirigia atravessou o vermelho e acertou em cheio Deane, Wagner Marques de Sousa  e sua avó, Ana. Wagner era o filho mais novo de Di. Ele tinha apenas seis anos de idade quando o acidente aconteceu. Morreu algumas semanas depois de sua avó, Ana, que tinha 59 anos na ocasião e faleceu alguns dias depois do atropelamento.

Dê ficou internada por meses no hospital, até que se recuperou, e hoje, apesar de todas as marcas que veio a ter, por causa das cirurgias que sofreu, é uma moça forte e sadia. Em 2004, para ficar mais próxima da filha, Diana pediu para que a filha morasse com ela, e o pedido foi atendido. Após concluir seus estudos e passar um ano se dedicando ao trabalho e a cursos que ela queria fazer, como informática, Dê resolveu “sair do ninho” e ficar longe de sua mãe, tudo isso para realizar o sonho de seguir na faculdade que queria, Educação Física. Sobre sua mãe, Dê diz que ela é “uma mulher batalhadora, corajosa e guerreira” Ela é grata por Di estar presente, compartilhando com ela todos os momentos importantes e difíceis de sua  vida, e define a mãe como uma “joia rara”.

Estudos

                “Fiquei muito tempo preocupada com a educação da minha filha. Agora que ela já tomou seu rumo, eu tenho que terminar meus estudos”, diz.

Diana é uma pessoa que, assim como eu, frequenta centros espíritas. Um dia, uma mentora disse que ela estava infeliz e que era melhor ela fazer alguma coisa, afinal, seria uma pessoa que viveria por muitos anos. Dessa forma, Di começou a procurar alguma escola para adultos no final do ano passado. E achou! Localizada próxima à casa dela, no bairro de Vila Guilherme, Zona Norte da capital paulistana.

Começou no começo deste ano. Estando na sala de terceira série (afinal, a escola que ela estudava em Minas Novas não dava certificado, e por essa razão, Di teve que começar do 0), ela se mostrou empenhada, e logo se viu indo para a sala da quinta série. Agora ela tem aula de inglês e de informática, além de ciências, matemática, literatura, português, história e geografia. Ela se diz contente com a escola, com as pessoas que conheceu lá e com toda a matéria que está aprendendo.

Não há ponto negativo em estudar, mas o que ela não gosta muito, é de pegar ônibus lotado toda a manhã, para se dirigir ao trabalho. “Tem muita gente mal-educada … Só tem alguns cobradores que quando a gente dá bom-dia eles respondem e nos desejam um bom trabalho. Mas tem alguns motoristas que eu até desisti de falar qualquer coisa, eles são grossos demais”, diz.

                Relacionamentos

Aqui em São Paulo, Diana mora em uma casa vizinha à da irmã, Andrea Pinto Azevedo e próxima à da irmã Jane Maria de Sousa. Em 2012, Diana perdeu um de seus irmãos, Rosário, que morreu por problemas no fígado. Cada uma de suas irmãs têm uma filha: Kariny, de oito anos de idade, é filha de Andrea, e Gleiciele, 16 anos, é filha de Jane.

Além de suas irmãs, Diana tem a companhia de Edmilson Silva Conceição, pessoa que namora há seis anos. Ele é oito anos mais novo do que ela, mas ela nem liga. O que ela mais gosta nele é a companhia, gentileza e amizade que ele tem com ela. Eles ficaram separados por alguns meses, no começo do ano passado, quando ele resolveu tentar a vida no sertão baiano, onde sua mãe morava. Voltou três meses depois de sua partida, e depois disso, não se separaram mais. “Ele é uma pessoa muito boa, me ajuda com as coisas aqui de casa, e é meu amigo”, diz.

Gênio forte

Diana é do signo de gêmeos. Nasceu no dia primeiro de junho, mas como foi registrada no dia dois, faz questão de comemorar no segundo dia do mês. Seu gênio forte aparece nos dias em que algo a preocupa, dias estes que ela quase não abre um sorriso e fica irritada com uma certa facilidade. Nos outros dias, Di faz questão de rir, lembrando das épocas em que pedíamos ajuda nas lições de casa para ela, enquanto assistia ao programa do Gilberto Barros, na Tv Bandeirantes. E tem os dias, como o da comemoração do aniversário dela, que se limitou a um bolo deformado feito por uma de suas filhas postiças; em que ouve os choros de agonia das meninas que não sabem o que fazer da vida, e dá lições para que estas aprendam que a vida não é fácil, porém, não podemos desistir dela com facilidade.

Di, com mais propriedade do que ninguém, sabe que viver é muito difícil. Falar do acidente a machuca e da distância da filha, também. Mas ainda assim, sempre nos ensina a fazermos uma limonada com o limão que a vida dar, ou nos mostra como é bom manter as contas em ordem; além de ressaltar que nunca podemos julgar ninguém pelo o que a pessoa tem ou deixa de ter. Diana é essa pessoa especial, que todos deveriam ter em suas vidas … mas como sua filha disse, “Ela é uma joia”, e joias são raras demais para se ter por aí.

Dançando para a vida

Meu relógio marcava 17h27min. Conhecendo ele como eu conheço, eu já sabia que iria se atrasar. Lembro de uma vez ele falar em aula que detestava relógio, que só olhava as horas pelo celular, que vivia sem bateria. Para um professor de dança, que da aula em três academias diferentes e integra dois grupos de Street Dance profissional é algo meio inusitado.

Estar de volta à academia que fiz aula durante quase toda a minha vida para conversar com o meu antigo professor foi um desafio para mim. Sinto falta daquele lugar. Ele transforma as pessoas, esquecemos de todos os nossos problemas e ficamos preocupados apenas com a dança lá dentro. Fica tudo do lado de fora da porta de entrada.

Quando o meu relógio marcou exatamente 17h32min Flip Couto entrou na sala. Com aquele sorriso que há muito tempo eu não via, fez com que eu voltasse automaticamente no tempo. Como ele havia se atrasado para a nossa conversa, esperei ele terminar de dar a sua aula para que finalmente pudéssemos conversar.

A aula se iniciou bastante animada, logo no aquecimento o professor já puxa uma coreografia e faz piadas com os alunos a todo o momento. Ali eu pude perceber o quanto ele era querido por todos daquela sala. Quando fiquei ali durante uma hora e meia assistindo a sua aula, foi quando pude perceber o que fazia dele um cara único, alegre, espontâneo e cheio de vida.

Quando a aula chegou ao fim, sentamos no chão da sala para que pudéssemos conversar e ele contar um pouco de sua vida. “Quando eu era pequeno, costumava ficar na garagem ou trancado no meu quarto com o som ligado no último volume, enquanto isso, eu via os outros meninos na rua jogando futebol”. Flip nunca ligou para o que os outros iriam falar ao seu respeito, mas sempre foi julgado por ser um menino que não gostava de futebol, “as pessoas não entendiam porque eu preferia ficar no meu quarto sozinho dançando, minha mãe chegou até a achar que tivesse algo de errado comigo, na época ela não compreendia esse meu jeito, mas hoje ela é a minha maior fã.”.

Ao atingir oito anos, depois de muita conversa dentro de casa, conseguiu convencer seus pais a lhe matricularem em uma escola de dança. Estudou Street Dance e Jazz durante 10 anos, mas se formou apenas no Street Dance. “Nunca fui muito a favor do diploma na nossa área, acho que quando uma pessoa tem talento e nasceu para a dança, não é um diploma que vai mostrar o quanto a pessoa é capacitada.”.

Hoje Flip da aula em três academias diferentes, é membro fundador do grupo Funk Fanáticos e dançarino no grupo Discípulos do Ritmo e costuma viajar bastante pelo Brasil e também para fora do país para participar em competições de dança, “Não há como descrever a ótima sensação que sinto quando vou para algum estado representar o meu grupo e minha dança, o carinho da galera, os gritos, realmente é coisa de outro mundo, não da para acreditar que cada vez mais conseguimos aumentar o nosso grupo de seguidores”.

A última experiência marcante que teve com a dança foi no último São Paulo Fashion Week, a marca de roupas Cavalera convidou o grupo de Flip, Funk Fanáticos, para participar do desfile inspirado no programa da televisão americano dos anos 1970 “Soul Train”, a marca transformou a passarela num programa onde os modelos viraram dançarinos. “Foi uma experiência completamente nova para todos nós, nunca imaginei que um dia estaria em cima de uma passarela no SPFW, no início eu até comentei com a minha amiga, Ju Ramos, que recebi a ligação do pessoal da Cavalera e ela já achou que iríamos ter que desfilar e já estava pensando em pular fora. Só depois que tivemos a reunião com a marca que eles comentaram que queriam um grupo de dança como o nosso para fazer o fundo no desfile. Na hora olhei pra cara da Ju e comecei a rir, nunca a vi tão aliviada.”

Uma hora já havia se passado, mas eu não percebia o tempo passar. A conversa era boa e leve, fora que a saudade que eu estava do meu professor também colaborava na hora de conversar. Foi quando abriram a porta e eu me surpreendi quando vi a minha outra professora de dança parada na porta, Ju Ramos. O Flip tinha combinado um ensaio com naquele dia e ela chegou mais cedo do que o combinado e juntou-se a nós para contar um pouco sobre o professor.

“Quando eu conheci esse cara, ele era o meu professor, até que teve um dia que ele falou que queria conversar comigo depois da aula, que era pra eu ir com ele comer alguma coisa em algum barzinho ali perto da academia, a primeira coisa que eu pensei foi: “esse cara tá me cantando”, mal sabia eu que ele ia me convidar para integrar o grupo dele.”.

Hoje, Flip Couto fala que no futuro pretende focar apenas nos seus grupos de dança. “Sei que vai chegar uma hora que não vou mais ter pique e muito menos idade para continuar dançando, então, pretendo continuar na área só que na parte de administração e divulgação da nossa dança” e Ju completa: “acho que ele vai se dar muito bem fazendo isso, é sempre ele quem arruma os eventos pro Funk Fanáticos e consegue atingir muita gente com a nossa dança.”

Já era noite e eu havia ocupado todo o seu tempo livre. Flip é um cara que encanta e ilumina qualquer lugar que ele entre seu jeito sempre pra cima e a maneira que ele trata suas alunas, amigos e funcionários de qualquer lugar que ele passe. Com um sorriso no rosto, peguei o ônibus na direção da minha casa, com o pensamento de que aquele final de tarde valeu mais a pena do que o meu dia inteiro.

FERNANDO ALVES: UMA AULA À PARTE

No meu relógio, 19:12. Só me restava acelerar. De metrô, fui da estação Brigadeiro – na Avenida Paulista – para a Santana. Entre uma estação e outra, ansiedade e curiosidade se misturavam com certa preocupação: no rádio, o atraso é inadmissível, será que ele perdoaria o meu? Não que eu fosse apresentar, entrevistar ou entrar no ar. Não se tratava de um compromisso com o rádio, mas com um radialista, o que justificava a minha aflição.

Eram 19:47 quando cheguei na Rua Voluntários da Pátria. O caminho ainda era longo. Experimentei na pele o esforço exigido por uma subida íngreme. O cansaço já era evidente quando às 20:07 cheguei na Unidade Santana do SENAC. Mais três escadarias e enfim eu chegava ao meu destino às 20:09. A aula já havia sido iniciada há 39 minutos. Uma leve batida na porta e um clima de incerteza sobre o que ocorreria. De repente, o abrir da porta é seguido pelo abrir de um sorriso receptivo de Fernando Alves, ou simplesmente Fernandão, seu apelido.

Locutor da Gazeta FM de São Paulo e docente coordenador do Curso de Radialismo daquela unidade, ele estava na sala 32 – estúdio de rádio – preenchida por cerca de 20 alunos distribuídos num “U” em frente às cabines de sonoplastia e locução. Para esta turma, o módulo teórico já havia passado. Era dia de prática de locução. Com seu caderno, Fernando se concentrava ao máximo para anotar as observações mais importantes de cada aluno na realização da atividade.

Basicamente, havia um texto informativo com três notícias de variados temas. A avaliação era feita com base na leitura do texto bem como na capacidade interpretativa destinada a cada conteúdo lido. Entretanto, o desafio se intensificava por haver um tempo exato para que o tudo fosse lido. Então, um de cada vez, os alunos iam à cabine de locução e – sobre a trilha cronometrada – realizavam o exercício. Fernando demonstrava profundo respeito com cada uma das vozes que se propagavam no estúdio.

Os olhos – entre os finos óculos – se fixavam no chão enquanto os ouvidos registravam os detalhes. Ali, sentado, repousava o corpo de pele branca, cabelos pretos e 1,88 m de altura. O rosto alongado se confundia com as longas e velozes mãos que, contra o tempo, disparavam a fazer anotações. Ao término, um feedback preciso com sinceridade desconcertante. Como um maestro, ele abria os braços e iniciava a análise depois do exercício. “Cuidado! Está muito cantado, mais naturalidade”, “Atente para a modulação, é necessário variar mais”, “Repare em seu agudo, ele é muito intenso”, “No seu caso, a respiração precisa ser corrigida, lembre do diafragma”, “Vamos aumentar o ritmo, está muito lento”, “Articule ao máximo, caso contrário vai haver dificuldades para a compreensão”.

E, entre uma crítica e outra, ele tranquilizava a todos: “O começo do módulo prático é mais chato mesmo. A gente tem de se desfazer dos vícios agora. Mexer na zona de conforto de cada um é sempre complicado.” Bruna Moraes, uma de suas alunas, gosta do tom de seriedade com que as aulas dele são dadas “Acho ele muito focado, concentrado. Ele é profissional e exige profissionalismo da gente. Dá pra notar que há todo um planejamento nas aulas, assim como uma meta para a gente alcançar, depende do nosso esforço”.

Isso remete a um dos maiores desafios com que Fernando tem de lidar: a humildade, ou melhor, em alguns casos, a falta dela. “Este ponto não é exclusivo da comunicação, porém a área tem a peculiaridade da constante luta de egos. Ser humilde é, também, ter a possibilidade de se renovar, de considerar outras possibilidades em sua atuação. Pensando no rádio, por exemplo, aquele que deixa de se ouvir ou de acompanhar seu próprio trabalho, tem um fim em si próprio”.

Não é à toa que Fernando dá amplo valor à crítica. “Aqueles que querem se tornar comunicadores, bem como pessoas públicas, têm de estar preparados para lidar com o que se fala a respeito do que apresentam diante dos microfones, câmeras e etc.” Nesse sentido, ele faz questão de colocar todas as suas sugestões sobre a locução de algum aluno na frente de todos os outros, nunca em particular: “Isso não é expor, visto o respeito que tenho por cada um, mas é simular algo normal no dia-a-dia. Vai ser assim no mercado de trabalho e o curso tem a pretensão de simular situações em que o comunicador pode se encontrar. O momento da crítica é crucial”.

E, no caso de Fernando, este momento veio cedo e sem surpresa negativa. Ainda adolescente, estava com um dos maiores comunicadores do país, numa audiência nacional e em frente a uma bancada de jurados rigorosos. Ele participou do “Show de Calouros” com Silvio Santos em 1987, aos 17 anos. “Eu fazia algumas imitações, gostava de brincar com minha voz e fui ao programa junto do meu pai e meu tio. Minhas pernas tremiam, até que depois da minha primeira apresentação, Silvio me tranquilizou. Nos bastidores, ele me disse ‘Rapaz, você é muito bom. Realmente, muito bom’. Aquilo me acalmou para minha segunda apresentação no programa. No final desta última fiz as imitações e passei pelo julgamento da bancada. Todos votaram a meu favor com nota máxima. Estava prestes a receber o troféu “Show de Calouros”, mas Silvio havia esquecido de chamar Décio Piccinini. O resultado? ‘Meu voto é um NÃO só para o Silvio não me esquecer na próxima’. Fazer o quê?(risos)”.

Foi a primeira grande adrenalina vivida na comunicação por Fernando. Mas ele sabia que o humor não era a mais adequada área. “Eu não me achava engraçado. O que eu queria era fazer locução. Por extensão, a voz seria meu instrumento profissional. Passei a olhar com atenção para a arte de locutar”. Mas almejar não basta. Por isso, Fernando treinava e treinava muito, a ponto de isso lhe render fortes amizades.

Exemplo é a que mantém até hoje com Paulo Ramos. Na adolescência, mais do que amigos, eram sonhadores. Quando iam para a Escola Estadual Erasmo Braga, cada passo era pretexto para se conversar sobre rádio, voz e locução. “Lembro que imitávamos os locutores da época. Um prestava a atenção no ‘trabalho’ do outro”. Já em relação ao nível do que apresentavam… “Éramos horríveis (risos)”, confessa Paulo. Nada que o tempo e o treino não melhorassem.

Hoje, são companheiros de vida, de Fundação Cásper Líbero e de SENAC Santana. Paulo é a voz-padrão da TV Gazeta, responsável por narrar todas as propagandas e chamadas pertencentes à emissora e professor do curso de radialismo coordenado por Fernando. “Ele acabou me convidando para trabalhar lá. Quando estou dando aula, tento sempre lembrar da capacidade que o Fernando tem de teorizar a comunicação. Isso me impressiona. Ele é muito inteligente, tem um QI acima da média. Desde cedo foi astuto e rápido no raciocínio. Acho este seu principal diferencial.” Mas Paulo não se esquece de um outro fator capaz de destacá-lo dentro do meio. “Ele simplesmente ajuda. Não ajuda por algo, com alguma intenção ou interesse. Ele analisa o seu esforço, sua humildade e ajuda. É um grande ser humano.”

A paixão de Fernando pela locução começa a se formalizar em 1990, na primeira emissora pela qual passou, a Rádio Cidade de Itu onde comandou um programa romântico das 22 às 24. Por lá, ficou 11 meses. Depois, foi para Campinas trabalhar na rádio Antena 1 e fazer locuções para TV, numa afiliada do SBT. Este período durou dois anos intensos. “Eu sou de São Paulo, minha família também, mas eu ia pra casa a cada 15 dias. O ritmo era frenético, até que eu decidi que tinha de trabalhar na capital. Larguei tudo em Campinas”.

Num casamento entre a esperança e insistência, Fernando bateu de porta em porta nas emissoras de São Paulo, com várias fitas cassetes e gravações de seu trabalho. Foi na Rádio Cidade que conseguiu a sonhada contratação. “Era uma locução corrida, gritada. Fiz um piloto entreguei para o coordenador que gostou do que ouviu.” Mas não foi tão fácil. Semanas depois, Vinícius, com quem tinha conversado, foi demitido e a contratação, colocada em cheque.

Ele teve de aguardar a chegada do novo coordenador, Ênio, e sua decisão final sobre contratá-lo ou não. “De cara ele me perguntou o que eu havia acertado com o Vinícius. Não tive dúvidas e respondi  ‘A primeira coisa que eu acertei foi pedir a conta da rádio em que eu estava, então estou desempregado’. Bobagem! Desempregado eu já estava. Ele confiou em mim e me deu a chance. Meu horário era das 2 às 6 da manhã”.

A sobrecarga de funções, contudo, comprometeu seu caminho na emissora. “Eu era o mais novo da equipe, além do horário que eu fazia, também havia eventos para cobrir, prêmios para entregar. Tudo ficava sob as minhas costas.” A inexperiência e o cansaço o fizeram se precipitar. “Houve um evento importante, eu havia sido escalado e simplesmente não fui. Erro grave. Hoje, sei que foi uma atitude nada profissional. Mas amadureci com aquilo”.

Com a saída conturbada da Rádio Cidade, um mês de descanso. Reflexão e mais experiências. Fernando Alves foi para a Rádio Tropical. Depois para a “Rádio X” no sistema Globo de Rádio. Em 1996, a emissora se transformaria na Rádio CBN, e a locução jornalística seria exigida de Fernando. Neste tempo, porém, também estava na Rádio 99.3, da Record. Ali, Cacá Siqueira lhe dava um conselho “Ele achava que a figura do Locutor Noticiarista estava com os dias contados. Pensei bem nisso, concordei  e fui conversar com o Heródoto Barbeiro, comandante do projeto da rádio CBN. Disse que eu não ficaria”.

É aí que a Gazeta FM entrou na história de Fernando Alves. E entrou para não sair tão cedo: já são 16 anos de emissora – cujo estúdio também serviu de ambiente para as entrevistas. Fernando tem um horário das 14 às 18 horas. A Gazeta opera em 88,1 FM e tem gênero popular, apresentando músicas majoritariamente sertanejas. Entre as músicas, ele abre o microfone, informa o horário, anuncia prêmios, promoções e a participação dos ouvintes e lê alguns factoides. “Eu não me vejo fora daqui. Naturalmente que temos cobranças. Mas tenho um carinho muito grande por todos da equipe  e me sinto a vontade para trabalhar. O ambiente é de muita parceria”. Não só parceria como admiração. Jay Bee, sonoplasta da rádio, aprecia bastante o trabalho e a personalidade de Fernando. “Ele se difere pela competência e pelo esforço. É bom naquilo que faz porque tem disciplina para o que almeja. Mais do que um companheiro de trabalho, um amigo.”

Amigo que Jay Bee ajudou, após ter recebido um convite para dar aula na unidade Penha do SENAC, em 2008. “Eu não podia assumir a turma naquele momento e indiquei o Fernando. Ele começou como professor de lá e hoje, além de lecionar, é docente coordenador do curso da unidade Santana. É mais um exemplo da garra dele. Se ele assumir o desafio, espere o melhor.”

Respirando rádio com a vontade destacada por Jay Bee, de Zé Bétio e Silvio Santos a José Silvério e Éder Luís, sempre analisou tudo o que ouvia. Dessa análise, uma conclusão é certa: “O rádio não morre nunca, jamais. Ele muda tecnicamente, mas na essência não. Rádio é instantaneidade, companheirismo, utilidade pública, imaginação e, ainda mais hoje, é conversa e naturalidade. Não há mais aquela voz impostada e artificial. O rádio se humanizou e nada substitui sua lógica histórica.”

Fernando também tem uma produtora desde 1994, em que aplica sua visão radiofônica na produção de narrações institucionais, videoaulas, entre outros. Como qualquer ser humano, tem sonhos, embora já tenha realizado muitos deles: “Voltar ao interior para comandar um  programa de músicas românticas do passado, agora sem a pressão que tinha quando comecei longe de São Paulo. Ter minha própria escola de radialismo, ou até mesmo uma emissora em que eu poderia aplicar a minha visão de rádio. Enfim, fazer rádio pela paixão, pelo amor ao rádio, como faço há mais de 20 anos, mas com outro foco”.

Fernando também é família. Casado, tem dois filhos aos quais se dedica bastante. Prova disso é a emoção que sente quando ouve um  ‘papai’ de um deles. “É o que mais me agrada”, revela o locutor. Fernando é mais caseiro. Quando tem folga, adora assistir a alguns filmes, jogar videogame, ouvir músicas. E há um detalhe importante: a lasanha, apontada como seu prato predileto.

Nossa! O tempo passou depressa. Já são 22:38, a aula acabou há oito minutos. Os alunos vão embora, Fernando segue na sala 32 onde fechou o raciocínio do dia. Ele ajeita suas coisas, veste uma jaqueta pergunta se esteve tudo bem comigo e se deu certo o trabalho. Não respondi nada. Minha felicidade era tanta que fiz do silêncio a resposta mais positiva.

Ao longo das horas em que pude observá-lo, notei o quanto ele trata os outros como sujeito e não como objeto: a maneira com que atende, olha no olho e considera aqueles que estão ao seu redor. Como pede o manual de uma boa aula, por diversas vezes, Fernando conseguiu quebrar conceitos ou ao menos reconstruí-los. Antes da matéria, eu pensava que um bom comunicador era aquele que tivesse repertório e poder de improviso. Doce ilusão. Conviver um pouco com Fernando é acrescentar a humildade a esta lista. Aula de locução? Não só. Aula de vida, de conduta. E que aula espetacular! Uma aula à parte.

De vendedor de veneno a ecochato

Sentado em uma poltrona feita a partir de garrafas PET, ele ri e exala nostalgia. Dissera que não podia conversar muito comigo, por causa de uma reunião, s[o estaria disponível por “umas horinhas”.

Dentro de sua sala no Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (inpEV), Mário Kazuchira Fujii demonstra estar satisfeito, e aparenta viver um momento de calmaria em sua vida. Filhos criados, todos graduados ou graduandos no ensino superior; apartamento na zona sul de São Paulo, com uma esposa e dois cães; algum tempo para aproveitar hobbies particulares, como fotografia e culinária.

Quando falei com ele pela primeira vez, me perguntou por que alguém faria um perfil sobre sua vida. Ele mesmo se autodenominara um “Average Joe”, um José da Silva, que no caso é responsável pelo setor de logística da inpEV. Sua função é garantir que embalagens de agrotóxicos (defensivos agrícolas, para alguns) tenham um descarte adequado, impedindo maiores danos ao meio ambiente e à cadeia produtiva. Todas as vezes que foi procurado por algum jornalista, a intenção era abordar este assunto, contribuindo para matérias de canais e veículos voltados para o agronegócio.

Mas, se todo mundo tem uma história para contar, Mário tem várias. Derrubada a barreira que impedia um contato inicial, ele falou por aproximadamente vinte minutos quando perguntei qual o melhor momento da sua infância. Depois disse sem parar por mais dez minutos quando perguntei o que ele considerava mais importante. E após mais diálogos, descobrimentos, risadas, comoções, percebi que a poltrona feita de PET já ouvia nossa conversa há pelo menos duas horas e meia.

A secretária entrou na sala, perguntando se ele estava pronto para a reunião da tarde. Sempre de bom humor, encerrou a conversa de forma polida. “Olha, acho que ele aqui já pode ir no meu lugar. Deve saber mais da minha vida que eu mesmo.”

 

Graças a Elis

Mesmo gastando algumas horas na conversa com Mário Fujii no escritório, não senti o tempo passar. Posteriormente, pude visitá-lo em sua casa, um apartamento no bairro de classe média-alta da Vila Mascote, em São Paulo (SP). Fui recebido pela esposa dele, Angela. “Aqui em casa é isso, uma disputa para ver quem fala mais. Sempre foi assim, desde os tempos de UENP.”

Os dois se conheceram quando Mário cursava  engenharia agrônoma na Universidade Estadual do Norte do Paraná, no campus localizado na gigante Bandeirantes, onde nasceu e que hoje tem pouco mais de 30 mil habitantes. O estudante de então 22 anos estava no último ano de faculdade quando falou pela primeira vez com sua esposa em um show de Elis Regina, na capital paulista.

“Ele não gosta de falar disso, porque se os filhos resolvesse imitar, acho que ele morria do coração”, comenta a mãe da família. “Mas vou falar mesmo assim. Foi uma maluquice inconsequente, mas que deu no que deu hoje.”

Quando Angela começou a contar a história do “japonês gordinho que vendeu a bicicleta para ir ao show”, Mário abriu a porta e entrou na sala. Logo percebeu qual era a pauta, esbravejou de forma bem humorada e tomou o posto de orador.

“Meus pais tinham me dado uma bicicleta de aniversário, para eu me deslocar pela cidade. Uma semana depois, tinha vendido para juntar dinheiro e ir ao show da Elis com um amigo. Pegamos carona em três caminhões até chegar na cidade, com apenas uma troca de roupa e o endereço de um parente dele. No fim, conseguimos ir ao show, e foi lá que encontrei esse ‘trem’ aí.”

Antes do show conversar, eles trocaram olhares, fósforos, conversas e por fim, abraços. Se encontraram novamente em outra ocasião, e após quatro dias se vendo, Mário voltou a Bandeirantes, prometendo fazer a mesma loucura para visitá-la em São Paulo.

Foi e não voltou mais.

“Três meses depois, fui encontrá-la. Mal sabia que ela morava em uma pensão com freiras, e que saía pouco do ‘internato’. Mas que fugia muito.” Sempre rindo, Mário ofereceu o primeiro dos muitos petiscos da noite, e pude descobrir mais sobre aquela fase da sua vida. Cabelo black power, roupas alternativas, estilo bicho grilo pictorizado em um japonês meio gordo, meio baixo, sempre simpático.

 

Cuidado, produto tóxico

No primeiro encontro que tive com Mário, no escritório, ele me contou como chegou àquele estranho posto, um especialista na logística reversa, no descarte de embalagens. Depois de ter trabalhado em multinacionais como Shell, Cyanamid e BASF, ele se especializara no destino ecologicamente correto de embalagens vazias. Naquelas empresas, sempre atuou na área de defensivos agrícolas.

“Sempre me importei com natureza e meio ambiente. Já trabalhei muito com fungicidas, herbicidas, mas hoje só cuido do outro lado dessa cadeia. É uma mudança bem radical. Continuo relacionado aos agrotóxicos, mas participo de forma diferente.”

Hoje, o casal Fujii possui três filhos: Cauê, de 21 anos; Daiune, de 25; e Caioá, de 29. Certa vez, quando o primogênito tinha por volta dos seis anos, perguntou ao pai exatamente o que fazia, para registrar em um trabalho escolar. Mesmo com explicações e exemplos, o garoto mostrou-se convencido com um fragmento disso tudo, um pedaço da resposta de Mário. “Vendedor de veneno. Ele escreveu isso na tarefa, e no mesmo dia a escola ligou, falando para instruir melhor. Eu ri, fazer o quê. Um dia ele ia entender.”

Entendendo ou não, Mário mudou radicalmente de rumo. Após largar a BASF, se uniu a uns amigos e começou a fazer palestras, falando justamente sobre os riscos dos defensivos agrícolas. Em uma dessas ocasiões, surgiu o convite para participar do Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias, o inpEV.

Uns 20 anos após aquela pergunta, Mário revela que nem todos entendem bem o que ele faz. “Meu sobrinho me perguntou esses dias o que eu fazia. Já achava difícil explicar o que era agrotóxico para uma criança, imagina logística reversa? No começo ele achou que eu era lixeiro. Depois o pai dele (irmão de Mário) me definiu como ecochato, e isso, para variar, pegou.”

 

Missão Espiritual

Sustentabilidade a parte, Mário ainda dedica grande parte do seu tempo a uma atividade pouco difundida entre os filhos: ele e Angela são colaboradores de uma paróquia na Vila Mascote, mais especificamente de uma igreja localizada na Rua Palestina.

Todos os sábados e domingos, eles chegam na capela por volta das seis da tarde, arrumam o altar, organizam os folhetos e todos os instrumentos que serão utilizados durante a missa das sete horas. Nesta, servem como ministros paroquiais, ajudando o padre na homilia, leitura, cantoria ou qualquer ponto que precisar de uma força. Ajudar nunca foi uma dificuldade para Mário, segundo o padre Antonio Neli. “Estão sempre dispostos, tanto ele como a Angela nos ajudam a organizar a vida. Inclusive, são eles que estão cuidando da ida dos jovens de nossa comunidade para a JMJ (Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro).”

Se nas missas cuida de tudo, nas quermesses fica na barraca de pastel. Mário conta todas as piadinhas que tem que ouvir semanalmente. “A maioria só diz: ‘aí japa, vai ter pastel hoje ou só hóstia mesmo? Acho quase desrespeitoso, mas acabo levando na brincadeira.” Os mais chegados se aproveitam do passado como vendedor de veneno. “Ano passado ouvi muito ‘o meu pastel é orgânico ok? Sem agrotóxico no meu tomate, por favor.’ A galera não perde uma oportunidade (risos).”

O próprio padre admite entrar na descontração e interagir de forma bem humorada com Mário. “O pastel nem é tão bom, mas ter o japonês vendendo ficou marca registrada. Nos anos que a esposa ou a sogra dele são responsáveis pelo pastel, acho que fica mais gostoso. A função dele mesmo é ficar ali no balcão, é o nosso marketing ambulante.”

 

A chegada do alemão

Hoje com 52 anos, Mário sente os efeitos do tempo. Pelo menos, começa a admitir. Pegar caronas em caminhões, além de imprudente, seria impossível, devido às constantes crises no nervo ciático, que pedem injeções regulares de corticóide nas costas. Além disso, em todos os ambientes com que estive com o engenheiro agrônomo, frases como “Ôôô… Como chama mesmo? Aquele negócio, daquela viagem, que a gente foi com… Com aqueles… Aqueles dois lá…” eram muito comuns.

No meu último encontro com Mário, após uma das missas, senti liberdade para perguntar a respeito, saber se ele se considerava esquecido. Ele sabia exatamente o porquê estava perguntando isto e a quê estava me referindo.

“Você sabe por que eu ando meio esquecido?”

“Não, por que?”

“Culpa do alemão.”

Pensei alguns segundos, logo veio a explicação.

“Esse tal de Alzheimer. Já está batendo na porta, logo menos entra de vez”, disse, apontando para a cabeça.

A esposa então deu um tapa forte no seu ombro, e replicou.

“Mas como fala besteira. Ele não tem nada disso, tá é ficando velho.”

Dei risada.

Mário hoje cursa MBA em Gestão Ambiental na Fundação Getúlio Vargas, e está se especializando cada vez mais em sustentabilidade e logística reversa. O Zé Ninguém, Average Joe, se mostra hoje como um dos grandes nomes nesta área no Brasil, dando palestras mensalmente, aulas magna, apresentações on-line e também pequenas lições a sobrinhos para convencê-los de que ele não é um ecochato.

Também no último encontro, fiz despretensiosamente as mesmas perguntas iniciais do primeiro encontro. Qual o momento mais importante da sua infância e o que ele considerava mais importante. As respostas foram muito diferentes e muito parecidas, ao mesmo tempo, daquilo que ouvi no nosso primeiro encontro. Acredito que o que mudou foi minha percepção.

“Da minha infância, sem dúvida foi a época de Bandeirantes, da época que se era louco o suficiente para correr atrás de uma freira em um show na capital. O mais importante você já sabe, imagino. Se não souber, me liga e a gente marca uma pizzada em casa.”